terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre a navegação

Fotografia de Álvaro Domingues, in Vida no Campo (pp.192-193), Dafne Editora, Porto, 2012
Sobre Portugal e a vida, a partir de duas fotografias de Álvaro Domingues,
de A Vida no Campo.
A casa no lago é como que uma metáfora da relação que hoje estabelecemos com a terra, com o habitar, com a escala dos nossos gestos. Uma casa sobre uma jangada é um desejo de povoamento de todos os lugares, é o movimento ubíquo, improvável, de conquista do espaço. A segunda fotografia é a última do livro Vida no Campo e distingue-se de todas as outras pelo movimento e pela tensão que encerra.
O Portugal contemporâneo joga-se entre estes dois lugares: as águas tranquilas, mas enigmáticas, de um lago e um rio que enfrentamos na precariedade de uma barca pequena e frágil. Em momentos da nossa história comum conseguimos a vitória improvável sobre forças que nos eram superiores, outras vezes claudicámos e mergulhámos em tempos sombrios. Sempre sobrevivemos como povo e como cultura, mas as coisas foram mudando. Hoje a questão que se coloca é o que nos vai sobreviver? Neste aprofundamento do significado de cada vida, de cada ser humano, do indivíduo que somos antes de sermos comunidade, qual o preço de uma nação? Marginal ao problema da nacionalidade, a fotografia de um homem que enfrenta a corrente poderosa de um rio abre o diálogo com a Natureza, com as forças que nos rodeiam, que nos são exteriores e imensamente superiores à nossa capacidade de as enfrentar. Se a primeira fotografia vemos a relação económica que estabelecemos com o que nos rodeia e a possibilidade que alguns meios financeiros nos podem proporcionar, pondo a nu o eventual ridículo de mentes pobres e simples, na segunda fotografia o jogo já não será entre possibilidades e escolhas, de habitar aqui ou ali. A primeira imagem é o retrato de uma cultura; na segunda fotografia há uma luta milenar pela sobrevivência, por tudo o que de mais despojado temos, que quase se pode reduzir à condição de respirar. Num livro que interpreta um retrato, por vezes cruel, do que somos como portugueses, o discurso acaba com uma fotografia de um homem só frente à torrencialidade de um rio. Há um futuro em aberto, sempre o soubemos, mas o lugar que estamos a construir para habitar assenta em diálogos, muitas vezes surdos, que esquecem fatores importantes de equações complexas que não podemos simplificar.
Fotografia de Álvaro Domingues, in Vida no Campo (pp.318-319), Dafne Editora, Porto, 2012

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